sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Lâminas de barbear

LÂMINAS DE BARBEAR


Há dias, precisado de fazer a barba e não tendo lâminas em casa, dirijo-me a uma mercearia de bairro, e peço:
- Minha senhora, boa tarde! Queria lâminas pr’á barba, por favor.
- Não temos lâminas pr’á barba, temos é chocolates Milka.
- Pensando que de inusitado mas admissível gracejo se tratava, sorri e repeti: tá boa, minha senhora! Agora a sério, precisava de lâminas pr’á barba.
- Ó rapaz, você não ouviu? Já lhe disse que não temos lâminas pr’á barba, temos é chocolates Milka.
Na idosa senhora, que longe não andaria dos sem lâminas pr’á barba, notava-se já valente irritação… Seria o meu pedido algo inopinado, mesmo zombador e ofensivo da boa conduta comercial daquele estabelecimento mercantil?... Pelo sim pelo não, e antes que lhe desse alguma:
- Está bem, minha senhora, dê-me então um chocolate Milka! Pode ser daqueles com amêndoas.
- Aqui está. São dois euros.
Pronto!... No caminho para casa, não parava de matutar na estranha cena… na coerência… na sua ausência… na Razão da vetusta senhora… no Seu abandono…
Mal cheguei, casa de banho comigo! Começo a desembrulhar o chocolate; saco da respectiva espuma e… fiz-me ao mar.
Nunca um escanhoar me soube tão bem!




Carlos Jesus Gil

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Apetece-me...

Apetece-me…

Dizer:

que jamais voltarei a escrever um poema de amor;
que não passam, aqueles, de pieguice expurgadora de dor;
que esta deve ser vivida, não expelida,
que, contida e debelada por luta con ou descon…trolada,
faz mais crescer do que “ deitar cedo e cedo erguer “
(que os Grandes – digo Grandes, não famosos – o souberam fazer).


Contudo, como não sou Grande e, mais que tudo, transbordo de dúvidas sobre se alguma vez escrevi um poema de amor – quando muito, poesias de paixão, também alimento, sim, mas menos imensidão -; como sou humano, habitáculo da imperfeição endógena, vou, naturalmente, contrariar – pelo menos tentar - aquele apetecer.




Carlos Jesus Gil

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Sobre o nada

E hoje foi isto, apenas isto, que me veio à real gana:



Jamais o nada poderá vir a ser coisa alguma!




Carlos Jesus Gil

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

A Insonsa

A INSONSA


Era uma vez uma rapariga tão linda tão linda, mesmo tão linda que, só não fazia parar o trânsito porque se deslocava sempre de metro e as portas de entrada e saída de sua casa bem como do seu local de trabalho davam directamente para o buraco (uns metritos, apenas). Bem - ou mal, consoante o juízo -, a bela diva padecia, contudo, de um grave problema congénito: era insonsa… sim, insulsa, insípida… não sabia a nada – qual génio perfumista de Suskind que, não obstante o seu potenciado e extraordinário olfacto, não possui cheiro próprio. Logo ele, ironia das ironias, que parido fora entre os mais nauseabundos fedores da Paris do século XVIII! -, a nada mesmo!
Os homens aproximavam-se, faziam trinta por uma linha para meterem conversa com ela e tornarem-se íntimos mas, quando tal sorte chegava em jeito de jack pot, logo verificavam que a massa ia quase toda para o fisco. Uma raspadinha, e fraquita! Serve esta modesta imagem para reportar o facto de que, mal bem conseguidos os intentos másculos, assim que dado o primeiro beijinho, feito o primeiro linguado e – e aqui é que está!- dada a primeira dentadinha, logo os ditos zé-zés camarinhas fugiam a 7777 pés…
Fora sempre assim. Desde que se lembra de ser gente e de andar à porrada nas ruas e na escola, sempre que algum ou alguma colega lhe punha os dentes, mal a primeira e única trincadela se dava, era um vê-se-te-avias, uma correria freneticamente louca, do dentuço ou da dentuça, para junto dos outros. “A cachopa não sabe a nada”, diz quem a provou, e assim também não!... Tem que haver algum tempero, digo eu, que até nem gosto muito de fazer juízos de valor… quer dizer, muito não, mas a um niquito não me coíbo.
Há, porém, males que vêm por bem – todos o sabem, que o povo o diz de há tanto que se perdeu registo. Desesperada e a necessitar de merecidas férias, compra, com uma amiga, passagem para destino exótico. Dez diazitos fora de tudo!
Bem – mal, digo eu, que os factos assim m’o exigem -, a outra, papada… literalmente. Ela, logo à primeira dentada, é projectada por valente cuspidela… Até os canibais gostam das coisas bem temperadas!… E ela corria, corria, corria a bom correr a caminho do trilho que leva à cidade e ao hotel; e olhava para trás; e corria ainda mais; e… não era necessário nada disso, pois ninguém fora no seu encalço.




Carlos Jesus Gil