terça-feira, 20 de junho de 2017

Estrada 236


 
 

A permanência da tragédia tolhe-me qualquer pequeno pedaço de capacidade que possa ter para levar a cabo a simultaneamente tormentosa e exultante tarefa de escrever. Tento a prosa, ensaio um verso; atinjo por vezes um já significativo número de caracteres, porém todos constituindo uma desengraçada amálgama, um amontoado de palavras apenas com significado formal, tão só aquele que lhes é atribuído pelo dicionário, nada de alma, nem réstia de emoção! Apago.

            Nada de alma nem réstia de emoção, no tema que me propunha abordar, e que, devo admitir, surgia absolutamente a despropósito neste bocado de vida que teimo em confundir com um filme de terror, um script competentemente macabro. Se tivesse sido escrito pela mão do homem e posto na película ou em suportes digitais pelo homem e arranjado de fotografia pelo homem e interpretado pelo homem dado a estas coisas, o pessoal de Hollywood, tenho a certeza, tê-lo-ia galardoado com três óscares: melhor fotografia; melhor realização; melhor filme. O script, até à última para ganhar, não arrebata o prémio apenas porque perturbou demasiado a serenidade dos jurados. Outras categorias, desconfio, também não seriam contempladas nem tão pouco nomeadas. A música, por exemplo: uma banda sonora que acompanhasse em consonância aquelas perturbadoras imagens provocaria um conflito cerebral imediato em qualquer mente crítica, pois esta, é sua condição, habita o cérebro, e neste também moram os sentimentos e as emoções. Talvez os efeitos especiais também trouxessem de Los Angeles a estatueta cobiçada… Nada de alma nem réstia de emoção no tema que pretendia desenvolver, pois toda aquela era tomada pelo que via na televisão, todos os sentimentos e todas as emoções viajavam com as gentes daquelas terras do centro do Portugal peninsular, materialmente com todas elas, as que faleceram, que os mortos se dados às nossas consciências passam a ser todos nossos conhecidos, com os feridos, com os desapossados, com os abnegados e heroicos combatentes, com o povo como um todo, com o lar no sentido de Estado, de Nação, até mesmo com os políticos empenhados em mitigar sofrimentos, em consolar corações inconsoláveis, em encorajar quem sofre directamente na pele as consequências da tragédia, mesmo com aqueles que, dissimuladamente, tentam tirar proveito da dolorosa realidade. A minha alma, os meus sentimentos, as minhas emoções encontram-se também com eles. Até mesmo com as televisões, as rádios, os jornais e as revistas (em papel ou online) que não perdem uma oportunidade para “tabloidar”. Até mesmo com estas entidades, pois que elas informam, sim, mostram realidades que é fundamental não serem escondidas, apenas pecando (está no seu ADN) por aos eventos susceptíveis de cativar grandes audiências dedicarem tempo demasiado, principalmente em excessivos directos, sendo estes naturalmente pouco dados à prévia e cuidada ponderação exigível; por tanto insistirem no ocorrido, na notícia, tanto tanto que o desvio acontece e esta vai perdendo a sua essência tornando-se, não raro, em mera efabulação. E a realidade, já distante, a fazer pagar bem caro aos protagonistas da desgraça, da notícia, aqueles que em verdade proporcionam a venda da Coca Cola.

            Abomino a censura, porém é-me assaz clara a urgência de um lápis azul capaz de por termo a guiões que possam levar à realização de filmes desta categoria. São argumentos escritos a duas mãos: a da global natureza e a do homem. À parte do homem, revisão prévia! Com esta feita de forma idónea e afastada do cinismo, até a Una Natureza será influenciada na sua criatividade. Cinema deste, não! A comunicação social, essa terá sempre que noticiar… e sensacionalizar.

            Estrada Nacional 236, décor de um pavoroso filme de terror. Deixei de gostar de filmes de terror!

quarta-feira, 10 de maio de 2017

Viagem na Roda Gigante


 

            A Feira Popular era, de facto, popular. Fazia, sem dúvida alguma, jus ao seu velho nome. Sextas, sábados, domingos, vésperas de feriados, feriados e períodos de férias sempre a abarrotar. Nos outros dias, se bem que o bulício não fosse igual, ambiente e vida nunca faltavam.

            A história que, resumidamente, vos vou contar tem como protagonistas um grupo de amigos, em rigor conhecidos - pois nenhum ainda passou daquela fase que precede uma eventual relação de amizade -, pessoas que se foram conhecendo, ao longo do tempo, na Roda Gigante da Feira.

            Dividia-os a paixão pelo clube, pois por muito inverosímil que pareça cada um tinha o seu, e cada qual o defendia com garras e dentes. Acesas discussões todos os fins-de-semana e princípios da nova, em tempo de época, até o defeso chegar. Embora as discussões não mostrassem sinais de conhecer um fim, o convívio era-lhes inevitável, vital mesmo! As temperaturas das querelas, essas assim como tão rápido subiam, também súbito desciam. O equilíbrio sempre espreitou, e quando era de facto necessário entrar, entrava mesmo.

            Ora, se na Roda se foram conhecendo, era porque na Roda se encontravam regularmente. Pode mesmo dizer-se, sem que grande seja o exagero, sem se cair em avaliação ridícula, tão só enfatizando, que viviam na Roda, tal não era o uso dado pelo grupo de compinchas ao monstro de cadeirinhas voadoras!  

             Não é para todos, a Roda! Um gosto danado pela adrenalina, adictos inveterados, os impulsionou à viagem. Uma paixão doentia e um amor calculista pelo trajecto alimentavam a rotina.

            Todos adoravam o ponto cimeiro, o cume, o zénite do lugar. Porém, por paradoxal que às primeiras pareça, era cá em baixo, na base, onde cada um deles se sentia verdadeiramente bem.

            Só às primeiras o paradoxo aparece como opção a reter, só às primeiras; bem depressa chegam as segundas a mostrarem-nos que a lógica é reinante na factual observação. É que uma vez chegados acima, todos o sabem, não tarda começa a descida, e quão brusca ela é tantas vezes! Tão mais brusca quanto mais alto se subir e menos cautelas forem postas na construção da inevitável descida. Ao invés, cá em baixo, para além de ser ausente a possibilidade de queda inquietante, para além deste perigo não existir sabe-se que, mais agora, logo mais, recomeçará a subida. É o reino da ditadura do futuro, do sofrimento por antecipação.

            Ora, devo, a bem de ficar de bem comigo próprio, referir que estas sensações de, digamos euforia/depressão, as do falso paradoxo em relação ao lugar de surgimento, apenas as sentem dois dos amigos, conhecidos, vá lá! Os outros desconhecem aquela relação; para eles será sempre o eterno limbo emocional.

            Mas então, continuando a história, que não é estória, impõe-se-me mencionar que a Roda não sobe sempre direitinha, sem oscilações, o mesmo acontecendo com as descidas. Assim sendo, volta e meia, ou menos que isso, vemos os das pontas serem encostados aos ferros, e os do meio chegarem-se aos das pontas.

            Raras são as vezes em que os forçados encostamentos não encontram reacção alérgica, o que, diga-se, e a comprovar o supra referido, não configura a presença de verdadeiras amizades, mas sim mais o encontro de pessoas que se conhecem, convivem e sabem não lhes ser possível dispensar esse convívio. Qualquer delas, das pontas ou do meio, sabe serem indispensáveis as regularíssimas convivências, as repetidas reuniões. O problema poderá surgir não tanto da natureza da reacção em si, mas mais da intensidade da mesma.

            Já falam entre eles, os que sentem o falso paradoxo e os do limbo, que a bem da digestão de cada um, do bom funcionamento dos seus estômagos, deverão, todos, ter o bom senso de, sem prejuízo de mazelas graves, claro, amparar, amortecer o choque dos do meio. Caso não, os vomitanços surgirão… mais tarde ou mais cedo.

            E é nesta reflexão que se encontram todos, de há muito. Entretanto, a viagem continua. Umas vezes sobe-se, outras desce-se. Por ligeiro que seja o declive, curto é o tempo na horizontal.