segunda-feira, 27 de outubro de 2008

O Porta-Carraças

Tive sempre um enorme respeito pelos Vira-Latas puros... Aquela precoce maturidade tão vivamente presente em menino enteado!...

Ao vira-las que meu primo visitava e que, num repente, o nevoeiro apagara!



Conto


O PORTA-CARRAÇAS

Porta-carraças é um vira-latas puro, do mais genuíno que há.
À semelhança da generalidade dos puros derruba-caixotes, porta-carraças é possuidor não só de uma vasta colónia de carrapatos, mas também de uma mui nobre e forte personalidade.
Tais atributos não passaram despercebidos às cadelinhas da rua que passara a administrar desde que, com um pragmatismo invejável, abandonara a rua onde sempre vivera, objecto, agora, de um olhar muito cuidado do senhor presidente da câmara, pois lá comprara apartamento um parente qualquer. Pese embora o facto de em termos de estatura física o animal nem dever nada – entenda-se: devotos agradecimentos - aos vários pais que o conceberam e à mãe que o pariu, uma paixão pandémica impregnou o ar rasteiro daquela rua. Baixa estatura física, imperial porte moral!...
Fêmeas à moda antiga, sim!, das de antes, ainda, do cinema, da televisão e das revistas – daquelas que vendem muito -, sete cadelinhas polidas, penteadas, perfumadas e…mimadas, que, muito embora não concebam uma vida sem fachada, nos machos, porém, valorizam sobremaneira o que não se vê ( tá bem, e também algo que se veja! ), tendo, por conseguinte, caído perdidamente de amores pelo solitário canino. Culpa das saídelas à noitinha, para um simples passear (do dono) ou para uma mijinha…ou cagadinha!
Pronto, como o horário das saídas era coincidente - até porque era aí que a vizinhança punha a escrita em dia -, aquilo era um espectáculo!: sete cadelas a um osso, donas e donos arrastados, correntes desprendidas, uivaria, gritaria e, no meio de todo este pandemónio, claro está, o instinto animal a funcionar…com a que chegasse primeiro, que eram todas um mimo.
A coisa durou alguns dias, os suficientes para pôr a cabeça em água aos zelosos donos; para, em conjunto, decretarem a elaboração de um abaixo-assinado dirigido ao digníssimo edil - que aquela rua era de gente e cadelas de bem -; suficientes ainda para depositar a sementinha em algumas das sete fofinhas. Bem, pelo sim pelo não, as meninas não iriam sair à rua enquanto o cão não fosse para o exílio!
Tá bem, tá!, parece que não conhecem o nosso país!... Nem com o Simplex! Tudo leva o seu tempo – digo, para não ter que lavrar outro texto, muito tempo -, rapaziada.
Quinze, quinze foram as noites que a mais estóica das famílias aguentou. Já nem com o mais poderoso – também não é bem assim!... – dos indutores de sono conseguiam dormir, tal não eram as noitadas de ganição e ladração da sua bichinha! Queria filhos, mas não de um qualquer pai; queria-os fortes de carácter; queria os genes do porta-carraças.
Já as outras matilhavam a rua havia alguns dias – agora, por certo, já todas fecundadas – quando a cãozinha se lhes junta. O desvelo, vencido pela falta de descanso, deu lugar à resignação dos donos. E os técnicos do canil camarário que nunca mais vinham!...
Mas vieram, a seu muito tempo chegaram ao território do porta-carraças – o qual desconheciam, o que os levou a uma imediata indagação.
Depois de identificado o prevaricador, foi só sacar dos apetrechos e…zás, já está! Fácil, muito fácil; nunca passara por situação semelhante, de modo que carecia de treino específico… Na antiga morada a ordem de expulsão fora a falta de pão – que em rua limpa não se trinca.
Não acaba aqui a história do nosso herói – ainda vivente. Ao cabo de alguns dias num canil municipal, fugiu – não é cão de gaiola, o porta-carraças. Não me perguntem como!, que não sei. Sei por onde anda, mas não vo-lo digo.
Ah, as cadelinhas!... essas, depois de alguns dias na sua verdadeira sala, descobriram que as necessidades fisiológicas são para satisfazer quando é preciso, de modo que, ao voltar a casa das donas…





Carlos Jesus Gil