quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

O cau boio

Um Natal muito feliz e cheio de saúde para todos os "mundanos", é o meu desejo.




Podia ser um conto de Natal:




CAU BOIO




Tózito Lingueirão, dos, oficiosamente, Lingueirões, assim alcunhados por tão aficionados serem pela pesca daquele outrora tão abundante espécie, tão abundante tão, que oferecida era, pois ninguém dava um chavo por semelhante criatura… Eu provei, é bom!... Querem provar? Hoje é mais difícil. Se pescado, caro achado!
Ora, tózito, figura querida na terra, não apenas por madrugar no deixamento da Escola para a pesca artesanal se dedicar, como forma de ajudar os esforçados pais no governo da numerosa família - e do mais novo se tratava! -, mas também porque de petiz pitoresco traquina se tratava, tózito, dizia, tinha uma valente predilecção por comboios eléctricos de brincadeira, brinquedos estes que apenas vislumbrara, a duas cores, na velha Philips lá do café da terra. Até costumava contar aquela velha charada que diz mais ou menos assim: “ Um comboio eléctrico vai de Lisboa ao Porto. Para que lá é que vai o fumo?”… Contava, diz-se, imensas vezes a dita, mas sempre como da primeira se tratasse…. Era sempre quem mais ria, uma vez dada, quase sempre por ele, a resposta.
Por seu lado, o ti Augusto, seu carinhoso pai, que aprendera a ler e escrever só, lá teve uma dica ou outra, mas só, pode dizer-se, apesar de muito acompanhado, em beliches de navios do bacalhau… pois!, naqueles dias, por vezes longos dias e longas noites, de valentes temporais, o ti Augusto que sempre fora contra a saída precoce do seu pimpolho da Escola, só o que não podia não fazia para lhe tornar a vida mais vida. Do “cada macaco no seu galho”, extrapolava o velho senhor do mar, que à Filosofia pouco devia, que vida só é vida se cada fase for cumprida. O seu mais novo tinha saltado uma!... Ora, encontrando-se certo dia em terra, rigorosamente em St. John’s,Canadá, cidade portuária onde já não eram novidade os centros comerciais e as escadas rolantes – passavam tardadas inteiras para baixo e para cima… -, lembra-se o desvelado pai de ir a um dos ditos fóruns do consumismo em busca de algo que andasse sobre carris e fizesse “poucaterra, poucaterra, poucaterra…” – bem, isto sou eu a dizer -, lembra-se e vai. Corridas as lojas da especialidade, todas as casas de brinquedos, muitos foram os modelos encontrados, o problema era que nem para o mais modesto o dinheirito chegava. Ainda pensou em pedir emprestado a um colega, mas faltava muita massa. Não dava! Tinha que dar voltas à cabeça a ver o que podia encontrar, acessível, e que fizesse as delícias do seu pequeno. Zás, já sabia. Vira algo, ao seu alcance, que o filho iria de certeza adorar, pois brincava muitas vezes àquilo.
Já com a prenda no bolso, apressadamente o ti Augusto se dirige ao bacalhoeiro português, minúsculo ao pé dos dos russos, dos dos alemães…mas isso são outras histórias, pega numa folha de papel de carta, numa esferográfica e desata a escrever, em êxtase, genuíno, à mulher. Conta tudo; realça a prenda. Dentro de três meses estaria em Portugal, “ o pequeno vai ficar doido”. Dez linhas de carta que lhe levaram não menos que três quartos de hora a elaborar, e não fora por falta de ideias.
… “ Filho?”, “ Sim mãe!”, “ Recebi carta do teu pai. Daqui a pouco mais que dois meses tá cá.”, “ Maravilha, já não é sem tempo!”, “ A tua cunhada diz que ele na carta escreve que te comprou um comboio, pelo menos é o que ela diz que parece que lá está.”, “ Uma pista de comboio?!!!”, “ Parece que sim.”, “ Mas por que é que ele não chega já amanhã?!”, “ Tem calma tózito!”… E teve, que remédio!
O dia chegou. Já em casa, e depois dos demorados abraços e beijinhos da ordem, o vetusto pescador chama o jovem Tó para lhe dar o presente, a carga mais valiosa dos sacos que trouxera do navio. Entretanto, o ansioso delfim, ainda antes de o pai lhe poder mostrar a dita cuja, chama este à sala de jantar, se é que poderemos designar desta forma aquela desolada e exígua divisão!, para lhe mostrar o sítio onde iria meter a prenda, uma rectângulo correspondente a pouco menos que metade da mesma. “ Pai?”, “ Sim filho! ”, “ É aqui que vou meter a tua prenda. Dá, não dá pai? “, “ Filho?, mas isto é metade da sala! “…
Um esforço à pescador é o que o ti Augusto tem que fazer para não desfalecer. Depois de convocada toda a coragem, o ti Augusto desembrulha o presente: uma reprodução, em plástico, de um velho desbravador do outrora inóspito território americano do Norte: um cowboy!




Carlos Jesus Gil

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Conto que parece inacabado

CONTO QUE PARECE INACABADO




Podia rechaçá-los com a facilidade com que, antes do cavalo, troianos rechaçaram “gregos” naquela factual, ou não, batalha do simultaneamente belo e brutal, como todos os outros, mundo clássico… Qual quê?!! Comparação impossível! Nem sequer se trataria de facilidade; facilidade requer esforço… algum. Seria tal a ausência de dificuldade, que o vocábulo fácil, ou qualquer outro da sua família, não acolhe a tradução do não esforço total necessário ao arremesso de.
Podia, mas não o fez! Fez, sim… é que d’ele se trata, não de mim. A mim, todo o esforço do mundo de nada serviria. Eles avançariam, eles irromperiam muralhas adentro como espada amolada em guerreiro sem armadura.
Teria sido tão fácil metê-los a todos na linha!... Um estalar de dedos… nem tanto… só um toque… menos, só um processo mental. Entanto, preferiu tocar piano. Eles perturbavam, mas ele tocava piano!
E é o que tem feito desde então; é o que já fazia; é o que fará. Toca piano. Umas vezes piano, outras forte.




Carlos Jesus Gil