sexta-feira, 16 de maio de 2014

Jogo de Cintura


Se toda a gente dissesse apenas o que pensa, se todos, sempre que falamos, jamais traíssemos a nossa verdade; se todos sempre se comportassem de acordo com as suas convicções, tão e tão só de acordo com elas, ai da sociedade!... Não funcionaria, de todo! Uns para cada lado, o caos instalado, um turbilhão de intenções concebidas para nascer, impossíveis de abortar, arrancadas das entranhas de quem em prática as daria a conhecer, a profusa confusão, o fim da arreigada e heterogénea tainada. Amizades, poucas. Veríamos, no entanto, sorrisos genuínos, ouviríamos gargalhadas loucas de paixão pela razão do próprio riso; como ouviríamos choros intensos, profundos e inelutáveis lamentos.

            De acordo com este raciocínio, e querendo nós que a sociedade funcione e em pleno, há que, se não formos ingratos, fazer um elogio à hipocrisia, dizer um: bem hajas, hipocrisia! Bendita hipocrisia, benditos hipócritas, nós! Os que não o são, ora, esses doutrinam a confusão. Longe desses!

Bem, num modelo social em que discutir é trocado por ralhar; em que uma peleja de natureza argumentativa, com arsenal puramente dialético, retórico, é preterida em benefício de uma batalha por ideias feitas e tidas como verdades absolutas, opiniões que são as válidas porque são nossas, ideias e opiniões que se querem impostas porque são as que perfilhamos, uma batalha que quando ganha emite diretamente do perdedor para o ganhador quantidade apreciável da sua energia; numa sociedade que não tem em relação à discussão o apreço que se deve ter por tudo o que permite chegar à razão, à verdade do momento, do tempo -mais ou menos alargado,  não importa-, do tempo de todos os contemporâneos e, se for o contexto, dos tempos dos que já foram e dos daqueles que hão de vir, num modelo social assim, somente, mesmo!, com jogo de cintura! É, quando o paradigma construído e largamente difundido é este, e tão bem sabemos que o é, então só nos resta, de facto, se almejamos um grau de intranquilidade satisfatório -que a tranquilidade absoluta não é uma opção do catálogo-, entramos no jogo. E sim, faz todo o sentido o elogio à hipocrisia. É um elogio proveniente do bom-senso e da resignação, mas merecerá ser genuíno. Não, não temos que nos envergonhar de genuinamente elogiarmos algo que interiormente repugnamos, pois é uma ferramenta fundamental que nos é oferecida. Com ela construímos os apetrechos que nos evitam tropeços, trambolhões, mazelas várias. E até podemos aduzir aqui a estas alegações exemplos de quão mazelados, literalmente, ficamos de quando em quando, ao optarmos em determinadas alturas pelo não fingimento, entrando desse modo numa outra via, a do porradar. São frequentes estes exemplos, pelo menos apresentam uma frequência muito acima do que uma sociedade, um grupo de sócios, não é?, deveria admitir. Muito para lá do tolerável, pois somos o habitáculo da imperfeição, logo episódios daquele teor serão sempre admitidos, mas sendo raros, exceções, não como exceções/regra.

É que, e isto é-nos tão natural, cultural, quando entramos numa discussão é já com o pressuposto de que a razão é nossa, como tal nunca nos poderá passar pela cabeça, ainda que passe, mudar de opinião. Se o outro é deveras persuasivo, tão eloquente que nos consegue mesmo uma mudança, raramente lhe mostramos isso, em sua vez, zangados –e só pode ser conosco próprios-, porradamos!

Bendito Jogo de Cintura!