terça-feira, 4 de dezembro de 2012

A Cisma







Era longe na noite, e eu sem adormecer. Voltas e mais voltas, contas atrás de contas a rebanhos inteiros, mas nada! Pensei tomar um soporífero, mas o meu estoicismo aliado ao repúdio por coisas dessas levaram-me a tomar outra decisão. Tinha que me levantar.
Sinceramente, este meu traço de carácter tem-me feito das suas! Sou um seu vassalo, logo eu que tanto vendo irreverência! Se calhar não, às tantas não passo de um mero fã daquela, e o ser fã, de per si, apenas nessa postura, como sabemos ou deveríamos saber, nunca fez do próprio um par do seu ídolo. Prisioneiro único do edifício que construí, é a minha condição. Digamos que - que aflição! -, mesmo aqui, em matéria de construção, também não estou a ser rigoroso. É que, pensando melhor, quando muito apenas forneci a matéria-prima para o edifício, e, sabem os engenheiros e os arquitectos, com a mesma massa e os memos tijolos quanta coisa diferente, de qualidade vos falo, podemos construir. Bem, o certo é que a ansiedade me roía, enquanto a consciência me consumia. Havia, mais uma vez, que recorrer à purga, à recorrente catarse. A metodologia, o mais importante em qualquer actividade humana, é que era o busílis. Como iria eu limpar a porcaria, tanta!, que fizera durante o dia? É certo que lutei bastante contra, mas uma vez mais soçobrara. E também não fora por pura maldade ou por mal querer a alguém que fizera o que fizera, mas fizera-o, pronto!... Dá sempre jeito aduzir à liça uns quantos considerandos do tipo, sempre ajuda a uma desejada mitigação do problema, por menor que seja. E era-o, de facto, menor, micro, quase nano. Melhor que nada, ainda assim. Bem, ainda que manhãzinha cedo tivesse que estar aprumadinho e primeiro que todos, para exemplo, na torre mais alta; ainda que pouco ou nada dormisse, tinha que me levantar e dirigir-me ao sítio. Urgia corrigir ou pelo menos remediar o erro. O meu Senhor mo exigia. Iria despachar todo remelado? Que se danasse! Pelo menos seguiria tranquilo… até a minha condição me conduzir a outra. Pessoa facilmente contrita nunca poderá - se se quer livre de expensas, daquelas não tangíveis - navegar por estas águas, por mais titânica que seja a nave que comanda ou ajuda a comandar… Levantei-me.
Existe permanentemente em cada um de nós, ainda que por vezes de forma latente ou falsamente latente, um forte espírito de competição. Digo-o porque é verdade, mas também à guisa de desculpa para o que a seguir resumidamente descrevo. Já sentado à secretária do meu sumptuoso escritório, pouco depois de, com reverência de autómato - pese embora o facto de lhe sentir uma certa estupefacção, tal não era desusado aquele horário! - o segurança me ter franqueado a porta do majestoso edifício, já de computador ligado e esferográfica em frenética dança na mão direita – os meus neurónios recusam trabalhar sem a cooperação deste velho ritual -, qual alienado!, vejo-me de repente a apreciar as vivendas e os faustosos apartamentos dos meus amigos, dos meus colegas - mais dos meus colegas, diga-se em abono da verdade -; dou umas voltas nos seus carrões enquanto os meus filhos sonham com os bólides dos filhos deles; aprecio os respeitáveis colégios onde estudam aqueles meninos… A esferográfica, ofegante, talvez por o andamento imposto ter sido bastante superior ao normal, pára… Volvidos escassos minutos retoma a dança, ao ritmo e andamento normais. Desligo o computador; saio do escritório; chamo o elevador; o segurança, “ Boa noite senhor doutor! “. A cama esperava-me, como o Diário do Poder esperava os diplomas que assinara na tarde anterior… tal qual, sem tirar nem pôr. A cisma estava debelada, outras me esperavam. Está na nossa natureza!

Resumo:


É frio
            lá fora.
            Cá dentro, quentinho.
            … Este é o meu lugar!

1 comentário:

Anónimo disse...

O egoismo impede a verdadeira socialização, o poder leva à perda da abnegação