sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

E o Alberto e o Albino também...

E O ALBERTO E O ALBINO TAMBÉM…
XIV

MICROCONTO DE NATAL



- Lenita?
- Sim, amor.
- Leste o conto de Natal que escrevi ontem? Deixei-to em cima da mesinha de cabeceira.
- Li, está muito bonito… transmite espírito natalício. Subentende-se uma omnipresença do valor família.
- Então gostaste!... O que é que achas, devo ou não libertá-lo?
- Claro que sim! Deixa-o viver.
- Mas… e se o narrador levar a mal?
- Isso não vai acontecer. Às vezes chego a pensar que me saíste cá um coninhas do caraças… Sê afoito!, o que é que o ditadorzito te poderia fazer? Ele vai gostar, mas caso não, que mal te poderia causar?
- Poderia, por exemplo, nunca mais me convocar!
- Não não… Não vês, até pelo que se está a passar hoje, que já és autónomo? Esqueces-te que a partir do momento em que o dito cujo nos criou, já somos.
- Tens razão. E depois ele vai gostar. De certeza!
- Vai sim, homem. Força com isso. Acende a luz!...
- Seja:


O PRIMEIRO NATAL


MICROCONTO DE NATAL


Era dia vinte e quatro de Dezembro. Mafalda, uma menina de nove anos, fora com Teresa, empregada doméstica em sua casa, fazer as compras de Natal.
As ruas da baixa lisboeta estavam uma confusão, era um “mar de gente”… Mafalda, que resolvera enfrentar o frio agasalhando-se bem, deixara, inadvertidamente, cair o cachecol que lhe pendia do pescoço. Intuitivamente larga a mão de Teresa para apanhar o cachecol.
… Teresa não sabia o que fazer, foi uma questão de segundos!...
Mafalda chorava; para trás, para a frente, para os lados. Estava sozinha…na multidão!
Ao cabo de uns minutos, um vadio esfarrapado, um verdadeiro andrajoso, um “mete-medo-às-criancinhas”, aproxima-se de Mafalda. Esta não foge!
- O que tens, minha linda?
- Perdi-me de Teresa, a minha empregada.
- As palavras saíam-lhe da boca sem lágrimas por companhia, cada vez mais calmas à medida que ia tomando consciência que, por absurdo que parecesse, aquela situação não lhe era de todo estranha. Sempre estivera só, no meio de gente, mas só!
- Então os teus pais?
- O meu pai deve estar a chegar de Madrid, tem lá negócios. A minha mãe é advogada e também chega sempre tarde. E tu, onde vives?
- Eu?, eu vivo por aqui, nas ruas.
- Não tens casa?!
- Tenho, tenho muitas, em cada rua tenho uma.
- Onde vais passar o Natal, velhinho?
- Sozinho ou com os meus companheiros, numa das “nossas casas”.
- Deixa-me passar o Natal contigo.
- Não, vou levar-te à polícia, eles levam-te a casa.
- Não quero, em casa tenho muitas prendas mas não tenho Natal.
- Pois é, os pais de hoje dão coisas em vez de afectos!...
Mafalda passou a noite a partilhar as “iguarias”, a fogueira e os cartões dos vadios, mas teve Natal… O seu primeiro Natal.


- Isso mesmo!...
- … Sim senhor, muito bonito!; grande sensibilidade. Gosto, tinhas razão, ó coninhas, gosto de verdade.
- Estavas a espiar-nos, meu velho?
- Senti-vos, e fiquei-me a apreciar-vos. É engraçado, palavra!
- Espero que não faças o mesmo quando estivermos na cama. Ou já fizeste?
- Bem que já pensei fazê-lo…, mas não, pá. Fica descansado. Não sou nenhum pervertido. Já agora - esta é para a tua mulher -, também não sou nenhum ditadorzito. Ditador?!... Só se fosse zão!
Vá, fizeste um bom trabalho. Fica bem! Beijinhos, Lenita.
- Desculpa aquilo de há bocado, narrador!
- Tá tudo bem, vão descansados.
Mesmo jeitosa, esta enfermeirinha. Se o tema que os trouxe cá não fosse tão venerável, era capaz de deixar aqui umas ideias assim a modos que para a sacanice. Cala-te boca!





Carlos Jesus Gil

12 comentários:

dragao vila pouca disse...

-Gosto, tinhas razão, ó coninhas, gosto de verdade.-
E não faço mais comentários.
Um abraço

Alexandrina Areias disse...

Um 'microconto de Natal' do qual se retira muito...
É verdade, hoje em dia, vemos muitos pais a se esquecerem de ser pais... as crianças têm tudo... mas falta-lhes o mais importante... o amor, o carinho, o convívio, o afecto... em vez disso têm presentes... muitos presentes... e passam a maior parte do tempo com outras pessoas, que não os pais...

Este blog faz-me reflectir bastante sobre a sociedade em que vivemos, por isso, os meus sinceros Parabéns... E que estas personagens continuem a fazer-nos pensar e reflectir...

Aproveito para desejar um Feliz Natal e um Bom Ano Novo!
Até um dia destes...
Um abraço,

Alexandrina Areias

O Profeta disse...

Sabia apenas que era um pequenino naquela longa noite
No celeste um luminoso sorriso me chamava
Lançou-me aos olhos raios de deslumbrante luz
Era a minha prenda, uma brilhante…Estrela Alva…

Um Mágico Natal para ti querido amigo que ao longo deste ano me visitaste. Que a Estrela Alva te ilumine neste Natal.



Abraço

Unknown disse...

"Tenho muitas casas, uma em cada rua." Excelente

Anónimo disse...

Fantástico. Cheio de espírito natalício.

stériuéré disse...

Já perdi o fio à meada, tenho que ler o que ficou pa trás. JOkas ! até que enfim! Já tenho monitor:)))))))))))))

Anónimo disse...

Muito bonito. E a menina teve o seu primeiro Natal.

Anónimo disse...

As formigas não caem nas armadilhas do Natal.
Sou um médico louco? Um louco que se fez médico? Um paciente aloprado de outros que querem me curar? Socorro! Preciso de um novo mantra ou de uma nova visão de mundo? Ou das duas coisas, ou serão muito mais do que imagino? Help! Help! Sem teorias nem preconceitos. Amém...

gostei.continua.


..ainda um dia (sabe-se lá quando)te vou encontrar(não sei como) para poder-mos comer dois fizz de limão.

Mariazita disse...

Agrada-me o papel de defensora dos Alberto/Albino, tantas vezes vítimas da prepotência, altivez, e até, talvez, um pouquinho de malvadez(!!!) do narrador.

Mas hoje vou ater-me ao conto "Microconto".

É uma realidade que nem sempre o bom nível de vida corresponde a uma BOA vida.
Muitos pais, na ânsia de darem aos filhos o que eles (pais) entendem por conforto, bem estar, tudo do bom e do melhor, tornam-se escravos do trabalho, para alcançar um status que lhes permita realizar esses sonhos.
Mas fazem-no, muitas vezes, em detrimento da atenção e carinho que as crianças precisam, e merecem.
Daí resulta a solidão das Mafaldas que encontram, na companhia dum Sem Abrigo, mais calor do que nas suas próprias casas.

É de lamentar que assim seja, mas é uma realidade.

Boa noite, querido amigo.

Beijocas
Mariazita

Sentiste o perfume no ar???
Ó p'ra ela tão fresquinha e cheirosa, depois da banhoca...

Anónimo disse...

Por paradoxal que possa ser, também os filhos dos abastados são negligenciados tantas vezes. A Mariazita explicaõ muito bem.

Anónimo disse...

Sim, como a aa diz a darem tudo o que é material às crianças.Mas e no resto, o mais importante?

Anónimo disse...

A Mafaldita partilhou as "iguarias" e os cartões dos "vadios" mas teve Natal. É lindo.