domingo, 2 de fevereiro de 2014

O Caso Molas da Roupa

Lá fora o sol batia a pique. Eram cerca das duas tarde, e eu para a minha mãe “mãe, preciso de duas molas da roupa.”, e ela “não me digas que vais sair de bicicleta!”, “vou, sim.”. Era um domingo de Agosto, e havia arraial à tarde ali numa aldeia bem pertinho da nossa. E o conjunto era bom, dos melhores mesmo. Daqueles que arrastam sempre muita gente, muitos rapazes, muitas raparigas. Uma coisa atrai a outra, e uma ideia, uma certa ideia que se faz, não que se tem, atrai todas… as coisas. Era um domingo de Agosto, naqueles anos em que Agosto já era Inverno, porque nesse tempo primeiro de Agosto era primeiro de Inverno. Dizia o povo, e o povo nestas coisas pouco se engana, pouco ou nada mesmo. Povo sábio, saber que só existe porque se viveu o sabido. Povo sábio!... se te tenho dado ouvidos… não tinha chegado a casa no estado em que cheguei, uma bolha de água comigo lá dentro. Povo humilde e sábio, que pões o teu manancial de coisas que importa saber ao serviço de todos. Claro, não és masoquista, todos somos tu! Povo sábio, se te temos dado ouvidos, eu e os meus três companheiros de caça, nenhum de nós passaria pelo que passou, cada um em sua casa, nesse domingo à noite, pela hora do jantar.
A minha Esmaltina estava sempre um brinco. Travões afinadíssimos, corrente sempre oleadinha, quadro sempre esmerado, guarda-lamas impecáveis, campânula sempre com lâmpadas a dar luz – que as havias aos montes com as lâmpadas sempre fundidas, ou mesmo sem lâmpadas. Seriam bicicletas para o dia? Talvez, mas o certo é que também as via a circular à noite. Via-as porque para lá apontava a potente luz da minha. -, dínamo potente, daqueles que exigiam das pernas, pneus, bem, com os pneus é que a coisa nem sempre corria bem, ficavam depressa carecas, e eu tinha que os aguentar, eram caros. Na parte de trás o suporte, que nós apelidávamos, qual anglófono!, de sport. Por debaixo deste, uma caixinha com ferramentas, cola e remendos para algum furo que vitimasse a câmara de ar. No quadro, à frente, atrás ou em cima, consoante o modelo, uma bomba de ar. Tudo o que era preciso para fazer quilómetros e mais quilómetros, pois então!
“Não sobrou nenhuma, acabei de meter a roupa no fio.” Fui averiguar da verdade daquela informação, e deparei-me de fronte com ela. De facto as molas estavam todas ocupadas. “ Ó raio, como é que eu vou agora fazer?”, sempre tive a mania de conversar comigo mesmo. Por vezes até fico rouco, vá lá, disfónico, pronto! “ Olha ali aquela combinação tão agarradinha ao fio! Assim, tão caída, tão coladinha a ela própria, a parte de cima à de baixo, tão morta sobre o fio, nem vai precisar de molas. Vão ser já aquelas duas.”. E foram, tirei-as, a combinação deixou-se ficar, nem deu por ela, eu pego nos quatro pedacitos de madeira -dois a dois unidos por uma mola metálica-, e meto-os no bolso. Chego à minha mãe e digo-lhe até logo, saio de novo de casa, dirijo-me à arrecadação e pego na bicicleta, na minha Esmaltinha, o meu veículo estimado e cobiçado, que eu sei, eu sei que o era. Ele cobiçado e eu invejado. Bem, já na estrada meto a mão direita no bolso, e molas cá para fora. Eram as calças do Domingo, tinha que as proteger do óleo da corrente. Mesmo com as da semana fazia isso, quanto mais com as do Domingo! Uma mola para a perneira direita, outra para a esquerda, mesmo ali juntinho aos sapatos.
Em cima da bicha, vou ao café, onde já me esperavam o Francisco, o João e o Manel. O Mário e o Albino eram para vir, mas preferiram ficar a ver o Bonanza. Lá com eles!
Arrancámos ligeiros virados à festa. O sol ainda batia a pique, mas nuvens, ainda não muitas, faziam-lhe já companhia. A meio do caminho, mais. Parecia que iam também para a festa, e que estavam ainda com mais pressa do que nós. Mas de repente de novo a solidão da luz. E assim foi praticamente durante toda a tarde.
Uma vez chegados, depressa fomos ver se encontrávamos alguém conhecido, se víamos algum BMW, que era mais isso que lá nos levava. O baile ainda não tinha começado, mas o recinto já se encontrava bem composto. Num entretanto, que os entretantos sempre acontecem, fomos beber uma laranjada fresquinha. Estávamos a precisar.
À hora marcada -mais a meia três quartos da praxe-, lá começa o conjunto a debitar som, do bom, que aquele conjunto era mesmo à maneira. Os já arranjados foram os primeiros a menear as ancas, os que melhor piscavam os olhos foram os que se lhes seguiram. Comigo e com os meus camaradas, nada! Nada na primeira, nada na segunda; nada na primeira parte, nada na segunda. Da terceira não posso dizer o mesmo, só mesmo porque esta não existiu, nem sequer fizeram um encore! Soubera-o mais tarde. Estou a faltar à verdade, ainda demos uns pezinhos de dança, mas só naquelas modas de danças sozinho, tipo yé-yé.
Piscávamos tão mal os olhos!, qualquer um de nós!... Até devia meter dó. Digo isto hoje, à distância, porque a mesma e o espaço que a compôs me ensinaram coisas. Devemos ter metido dó a alguém mais piedoso. Enfim!
E o céu já carregado de nuvens, ainda não era noite nem crepúsculo. Lá por cima o vento, de oeste, dava-lhe forte. Nós como só olhávamos para baixo, nem sequer para a altura dos olhos das pessoas olhávamos, não demos por nada. “ Eh pá, pessoal, temos que nos meter ao caminho. Vamos levar uma molha do caneco!”, o manel. “Espera aí mais um bocadito, já falta pouco para acabar!”, o Francisco. “Pois, então isto está a render como o caraças!”, o João. Eu estive para não dizer nada. Pois o que haveria mais para dizer?! Tempo perdido, melhor, mal gasto. Irmos à caça mal armados! Ai, se nós nos atrevêssemos a aprender com o povo. Temos vergonha de ir para a carreira de tiro antes de nos aventurarmos no mato, depois é assim! Estive para não dizer nada, mas disse. Lembrei-me da minha Esmaltina, e resolvi dar razão ao manel. “ O manel tem razão, malta. Vamos já embora, a ver se nos livramos a ela!”.
Fomos, viemos… mas não nos livrámos a ela, de todo. Mal tínhamos encetado a viagem de regresso, ainda o conjunto se ouvia, já chovia a potes. Aguaceiro daqueles que fazem lembrar que seria mesmo bom que de vez em quando o pessoal da Câmara Municipal limpasse as sarjetas. Depressa nos confundíamos coma a água. E depois era a chuva a molhar-nos directamente, era a chuva a molhar-nos por via dos pneus das bicicletas uns dos outros, que os guarda-lamas não são guarda-chuvas, e pronto. De repente, e já o crepúsculo morria para dele nascer a noite, o céu pára de nos desancar. Mas eis que, nem dez minutos depois, nova descarga, e esta dura até chegarmos à terrinha, até cada um ir, sem um até amanhã, para sua casa.
Comigo sei o que se passou a seguir. Quer dizer, com os outros também, pois cada um contou aos outros, no dia seguinte, mas deles não vou falar. Pareceria mal. Chego a casa, meto a bicicleta na arrecadação, bato à porta, esta é aberta, pelo meu pai, e a minha mãe, lá de dentro “ Vês, vês o que fizeste à minha combinação? Ainda agora o teu pai ma ofereceu, pelos anos. Vê como ela está?!”.
Estava uma lástima, a combinação. Aliás, a combinação já não o era. Era combinação mas de um outro tipo. Era mais uma combinação de tecido com buracos no tecido, com óleo de carros e com água da chuva. Dera-se o caso de a roupa ter secado durante a tarde. Não chovera, fizera algum vento, a temperatura ainda estava para essas coisas, e a roupa secara. A combinação, coisa fina, de espessura, mal secara logo ficara à disposição do vento. Tão magrinha, mesmo um ventito qualquer faz dela o que quer. Assim, numa rajada um pouco mais atrevida e cínica, voara do fio para o chão do quintal; deste voltara a voar, mas agora para o chão da rua, que é a estrada. A combinação fez-se, contra-vontade, bem o sei, pista para motorizada, alvo para ciclista apontar, asfalto para carro rolar. Foi rompida, vilipendiada, sujada de óleo e de lama, e no fim de água molhada. O problema é que uma combinação nunca pode, a bem, deixar de ser combinação, e aquela deixou-o. E foi por isso que a minha mãe não ralhou comigo naquele dia por eu estar todo molhado.
“As molas, onde estão as molas?”.

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