Se toda a gente dissesse apenas o que
pensa, se todos, sempre que falamos, jamais traíssemos a nossa verdade; se
todos sempre se comportassem de acordo com as suas convicções, tão e tão só de
acordo com elas, ai da sociedade!... Não funcionaria, de todo! Uns para cada
lado, o caos instalado, um turbilhão de intenções concebidas para nascer,
impossíveis de abortar, arrancadas das entranhas de quem em prática as daria a
conhecer, a profusa confusão, o fim da arreigada e heterogénea tainada.
Amizades, poucas. Veríamos, no entanto, sorrisos genuínos, ouviríamos
gargalhadas loucas de paixão pela razão do próprio riso; como ouviríamos choros
intensos, profundos e inelutáveis lamentos.
De acordo
com este raciocínio, e querendo nós que a sociedade funcione e em pleno, há
que, se não formos ingratos, fazer um elogio à hipocrisia, dizer um: bem hajas,
hipocrisia! Bendita hipocrisia, benditos hipócritas, nós! Os que não o são,
ora, esses doutrinam a confusão. Longe desses!
Bem, num modelo social em que discutir é trocado por ralhar;
em que uma peleja de natureza argumentativa, com arsenal puramente dialético,
retórico, é preterida em benefício de uma batalha por ideias feitas e tidas
como verdades absolutas, opiniões que são as válidas porque são nossas, ideias
e opiniões que se querem impostas porque são as que perfilhamos, uma batalha
que quando ganha emite diretamente do perdedor para o ganhador quantidade
apreciável da sua energia; numa sociedade que não tem em relação à discussão o
apreço que se deve ter por tudo o que permite chegar à razão, à verdade do
momento, do tempo -mais ou menos alargado, não importa-, do tempo de todos os
contemporâneos e, se for o contexto, dos tempos dos que já foram e dos daqueles
que hão de vir, num modelo social assim, somente, mesmo!, com jogo de cintura!
É, quando o paradigma construído e largamente difundido é este, e tão bem
sabemos que o é, então só nos resta, de facto, se almejamos um grau de
intranquilidade satisfatório -que a tranquilidade absoluta não é uma opção do
catálogo-, entramos no jogo. E sim, faz todo o sentido o elogio à hipocrisia. É
um elogio proveniente do bom-senso e da resignação, mas merecerá ser genuíno.
Não, não temos que nos envergonhar de genuinamente elogiarmos algo que
interiormente repugnamos, pois é uma ferramenta fundamental que nos é
oferecida. Com ela construímos os apetrechos que nos evitam tropeços,
trambolhões, mazelas várias. E até podemos aduzir aqui a estas alegações
exemplos de quão mazelados, literalmente, ficamos de quando em quando, ao optarmos
em determinadas alturas pelo não fingimento, entrando desse modo numa outra
via, a do porradar. São frequentes
estes exemplos, pelo menos apresentam uma frequência muito acima do que uma
sociedade, um grupo de sócios, não é?, deveria admitir. Muito para lá do
tolerável, pois somos o habitáculo da imperfeição, logo episódios daquele teor
serão sempre admitidos, mas sendo raros, exceções, não como exceções/regra.
É que, e isto é-nos tão natural,
cultural, quando entramos numa discussão é já com o pressuposto de que a razão
é nossa, como tal nunca nos poderá passar pela cabeça, ainda que passe, mudar
de opinião. Se o outro é deveras persuasivo, tão eloquente que nos consegue
mesmo uma mudança, raramente lhe mostramos isso, em sua vez, zangados –e só pode
ser conosco próprios-, porradamos!
Bendito Jogo de Cintura!
2 comentários:
Como canta o Sérgio Godinho... "cá se vai andando com a cabeça entre as orelhas".
Abraço!
Gosto imenso deste "ensaio"...e viva a hipocrisia sem a qual não vamos a lado nenhum!!!já aprendi...bj
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