Era longe na noite, e eu sem
adormecer. Voltas e mais voltas, contas atrás de contas a rebanhos inteiros,
mas nada! Pensei tomar um soporífero, mas o meu estoicismo aliado ao repúdio
por coisas dessas levaram-me a tomar outra decisão. Tinha que me levantar.
Sinceramente, este meu traço de
carácter tem-me feito das suas! Sou um seu vassalo, logo eu que tanto vendo
irreverência! Se calhar não, às tantas não passo de um mero fã daquela, e o ser
fã, de per si, apenas nessa postura,
como sabemos ou deveríamos saber, nunca fez do próprio um par do seu ídolo.
Prisioneiro único do edifício que construí, é a minha condição. Digamos que -
que aflição! -, mesmo aqui, em matéria de construção, também não estou a ser
rigoroso. É que, pensando melhor, quando muito apenas forneci a matéria-prima
para o edifício, e, sabem os engenheiros e os arquitectos, com a mesma massa e
os memos tijolos quanta coisa diferente, de qualidade vos falo, podemos
construir. Bem, o certo é que a ansiedade me roía, enquanto a consciência me
consumia. Havia, mais uma vez, que recorrer à purga, à recorrente catarse. A
metodologia, o mais importante em qualquer actividade humana, é que era o
busílis. Como iria eu limpar a porcaria, tanta!, que fizera durante o dia? É
certo que lutei bastante contra, mas uma vez mais soçobrara. E também não fora
por pura maldade ou por mal querer a alguém que fizera o que fizera, mas
fizera-o, pronto!... Dá sempre jeito aduzir à liça uns quantos considerandos do
tipo, sempre ajuda a uma desejada mitigação do problema, por menor que seja. E
era-o, de facto, menor, micro, quase nano. Melhor que nada, ainda assim. Bem,
ainda que manhãzinha cedo tivesse que estar aprumadinho e primeiro que todos,
para exemplo, na torre mais alta; ainda que pouco ou nada dormisse, tinha que
me levantar e dirigir-me ao sítio. Urgia corrigir ou pelo menos remediar o
erro. O meu Senhor mo exigia. Iria despachar todo remelado? Que se danasse!
Pelo menos seguiria tranquilo… até a minha condição me conduzir a outra. Pessoa facilmente contrita nunca
poderá - se se quer livre de expensas, daquelas não tangíveis - navegar por
estas águas, por mais titânica que seja a nave que comanda ou ajuda a comandar…
Levantei-me.
Existe permanentemente em cada um
de nós, ainda que por vezes de forma latente ou falsamente latente, um forte
espírito de competição. Digo-o porque é verdade, mas também à guisa de desculpa
para o que a seguir resumidamente descrevo. Já sentado à secretária do meu
sumptuoso escritório, pouco depois de, com reverência de autómato - pese embora
o facto de lhe sentir uma certa estupefacção, tal não era desusado aquele
horário! - o segurança me ter franqueado a porta do majestoso edifício, já de
computador ligado e esferográfica em frenética dança na mão direita – os meus
neurónios recusam trabalhar sem a cooperação deste velho ritual -, qual
alienado!, vejo-me de repente a apreciar as vivendas e os faustosos
apartamentos dos meus amigos, dos meus colegas - mais dos meus colegas, diga-se
em abono da verdade -; dou umas voltas nos seus carrões enquanto os meus filhos
sonham com os bólides dos filhos deles; aprecio os respeitáveis colégios onde
estudam aqueles meninos… A esferográfica, ofegante, talvez por o andamento
imposto ter sido bastante superior ao normal, pára… Volvidos escassos minutos
retoma a dança, ao ritmo e andamento normais. Desligo o computador; saio do
escritório; chamo o elevador; o segurança, “ Boa noite senhor doutor! “. A cama
esperava-me, como o Diário do Poder esperava os diplomas que assinara na tarde
anterior… tal qual, sem tirar nem pôr. A cisma estava debelada, outras me
esperavam. Está na nossa natureza!
Resumo:
É frio
lá
fora.
Cá
dentro, quentinho.
…
Este é o meu lugar!